terça-feira, 21 de março de 2017

das poesias...

.



no dia mundial da poesia
eu tinha um poema em circulação 
que se desviou 
entre a cabeça e o coração
.



enriqueço na solidão: 
fico inteligente, bonito 
e não este feio ressentido 
que me olha do fundo do espelho
ouço duzentas e noventa e nove vezes a mesma música 
lembro poesias
reviro gavetas
sonho
invento
abro todas as portas 
e quando vejo 
a alegria está instalada em mim
é um processo demorado e difícil 
como o da pedra filosofal
é o ouro do silêncio que me resta


"Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. 
Inclusive, os fatos. 
Ou a ausência deles. 
Duvida? 
Quando nada acontece, 
há um milagre que não estamos vendo."
.
- João Guimarães Rosa, do conto "O espelho", 
no livro 'Primeiras estórias'. 


as melhores coisas 
sempre acontecem 
quando a gente não espera que elas aconteçam
então hoje vou ficar em casa 
não esperando que aconteça 
nada

"Pouco se vive, e muito se vê... 
– Um outro pode ser a gente; 
mas a gente não pode ser um outro, 
nem convém..."
.
- João Guimarães Rosa, 
em Grande Sertão: Veredas.


nem tudo o que se reduz
é louco















em mim só acontece
o que eu entendo
todo dia inacabado
como todos os homens
sou inacabado
e jamais termino de ser
perco o que ganho no sonho
e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento
toda vez que me somo
subtraio-me
e sumo
uma porção levada pelo vento
incompleto no dia inacabado
livre de ser ainda
como e quando
cheio de porques
sigo a marcha
e a nódoa
das plantas e das estrelas
e o que me falta
e sobra
é o meu contentamento
ao que
este mundo é muito bagunçado
cheio de receios
porque
tudo o que muda a vida
vem quieto no escuro
sem preparos de avisar
as pessoas
tinham de rever o inteiro
o inacabado
do curso ordinário da vida
em todas as partes da figura
— do dobrado ao singelo
do errado ao sincero
enquanto isso
eu me significo
tentando contar
mas contar é muito
muito difícil
não pelos anos que se já passaram
mas pela astúcia que têm certas coisas passadas
de fazer confusão
de se remexerem dos lugares
o que eu falei foi exato?
inacabado?
foi?
mas teria sido?
agora acho que nem tanto que não
são tantas horas de pessoas
tantas coisas em tantos tempos
tudo junto e misturado
melhor mesmo é ouvir a voz e vez
das nascentes
porque só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todos os aprendizados
Mc Linn da Quebrada, Lêdo Ivo, Guimarães Rosa e Julio Carvalho


❝ Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes.
.

- João Guimarães Rosa, no livro “Ave, palavra". 


"Contar é muito, muito dificultoso. 
Não pelos anos que se já passaram. 
Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas 
– de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. 
O que eu falei foi exato? 
Foi. 
Mas teria sido? 
Agora acho que nem não. 
São tantas horas de pessoas, 
tantas coisas em tantos tempos, 
tudo miúdo recruzado."
.
- João Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: Veredas".

"O dia inacabado
Como todos os homens, sou inacabado.
Jamais termino de ser.
Após a noite breve um longo amanhecer
me detém no umbral do dia. 

Perco o que ganho no sonho e no desejo
quando a mim mesmo me acrescento.
Toda vez que me somo, subtraio-me,
uma porção levada pelo vento.
Incompleto no dia inacabado,
livre de ser ainda como e quando,
sigo a marcha das plantas e das estrelas.
E o que me falta e sobra é o meu contentamento."

.
- Lêdo Ivo (Vaso Roto, Barcelona), em "Calima", 2011.

"A vida é ingrata no macio de si; 
mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. 
Ao que, este mundo é muito misturado..."
-João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

❝ Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar. 
.
-João Guimarães Rosa, no livro “Noites do sertão”. 

❝ Tinham de o rever inteiro, do curso ordinário da vida, 
em todas as partes da figura 
— do dobrado ao singelo. 
.
-João Guimarães Rosa, no livro “Tutaméia: terceiras estórias”. 


“Temos medo dos que pensam diferente
e mais medo ainda daqueles que,
são tão diferentes,
que achamos que não pensam.
Vivemos em estado de guerra
com a alteridade que mora dentro e fora de nós.
Esse é o defeito original das fronteiras que fabricamos.”
Mia Couto




Dizem que ele [Heráclito],
interrogado sobre por que razão estava em silêncio,
respondeu: “para que possais tagarelar”.

HERACLITUS. In: LAERTIUS, Diogenes. Vitae philosophorum



"Fome de tudo – de conhecer por dentro 
– fome do miolo todo, do bagaço, da última gota de caldo.”
.
- João Guimarães Rosa, da novela “Buriti”, em "Noites do Sertão", no livro 'Corpo de Baile'. 1965.


eu tô igual a um cais:
a ver navios

ESTOU 
EM
BREVE

em mim só acontece 
o que eu
entendo


eu substitui o destino
pelo intestino
porque
prefiro digerir
tudo

doenças crônicas 
são rastros da máquina 
na real























Paz?
paz tem a pedra
que não sabe o perfume

"Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo".

.
- Ricardo Reis [Heterônimo de Fernando Pessoa], 
(escrito em 13.11.1935), In Poesia

“E de repente eu estava gostando dele, 
num descomum, gostando ainda mais do que antes, 
com meu coração nos pés, por pisável; 
e dele o tempo todo eu tinha gostado. 
Amor que amei – daí então acreditei.”
.
- João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

eu não me iludo
o tempo é mudo
e escorre silencioso
através das linhas
estritas do teu rosto
















a manhã clareia
azul
meu estado
de pele
branca

















amar
amar 
amar
em alguns casos
é um destroçar contínuo!...

convexo
pro
penso
converso
comigo
mesmo
e me
convenço
a ser
côncavo













infâ(ncia)mia
ninguém
minha mãe
sofreu tanto assim
e o rosto já sumido
mas vivo ainda o olhar
do travesseiro olhava para a janela
e os dias que restavam
enchiam o dormitório
à cata das migalhas
de afeto
que o pai já ausente
esqueceu de entreter o filho

























o amor por um momento
ao sul declina
e já se sabe que é morte
estamos tão longe
de tudo
de luto
resta apenas o efeito
em uma ponta
de nuvem


dilato minha ingênua fúria
em alguma noite
neste mesmo instante
ouço no fluir da mente 
profundas distâncias
enquanto isso
tomam-me pela mão
nuvens
e
encontro nas árvores
um fogo de outono



















sob um céu azul 
de tinta
repentina
vaga mais uma manhã

poeta insone:
perdi o sono
ganhei poesia

manhã 
deslumbro-me
imenso

"com minha fome de lobo
amaino
meu corpo de cordeiro
sou como
a barca ínfima
e o libidinoso oceano"
Atrito
Giuseppe Ungaretti

"O encarnado do céu
desperta oásis
para o nômade de amor"
Sol-pôr 
Giuseppe Ungaretti

o que cativa um poeta
não é a poesia
- é a palavra















manhã é névoa que nos cancela
nasce talvez um sol no alto
por trás da janela
escuto agora um carro passando
do lado de fora
de onde a cidade
atravessa
então sol rapta a cidade
nada mais se vê
de tanta clareza
nem mesmo as ruas resistem muito
o sol põe sobre
os postes
reflexos
de luz
um olho
do outro lado da rua
espia
um
sonho
deste dia
que acorda
resta
a vida
em inexaurível segredo

cada pessoa se expande 
e demora
nas outras
para ficar mais só 
basta mirá-las

validade
se você faz aniversário
desfaça seus dias
devagar
da pétala
ao papel de presente
retirar o embrulho
e jogar
fora
junto com o seu último
inferno
astral
de molho a vida
de novo
antes que seja tarde
soprar
ainda que por muitos anos
as velas
ainda que os barcos
naveguem
a esmo
e os seus canhões
disparem
parabéns

“A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exílio.”
.

– Friedrich Nietzsche, em “Cartas a Peter Gast”, Nice, 15 de janeiro de 1888.

as coisas que me assustam
é porque não me assentam

"Eu
agora
estou livre
do amor,
dos cartazes.
O urso
do ciúme
é um tapete de unhas.
Quem quiser
uma prova
de que a terra é curva,
sentado
sobre as próprias nádegas,
resvale!
Não,
não vou impor
os meus humores negros,
já não quero falar,
e com quem falaria?
São
as guelras da rima,
aflando sem sossego,
em gente como nós,
na areia da poesia.
O sonho é dano,
a fantasia inútil,
é preciso
arrastar
as rotinas do tédio.
Mas ocorre
que a vida
tome um perfil inédito,
e revele
a grandeza
através do que é fútil.
Nos dois
contra o lirismo,
baioneta calada,
buscamos
a nudez
da palavra precisa.
A poesia,
porém,
é uma não-sei-que-diga,
largada por aí,
sem lugar para nada.
Isto,
por exemplo,
é falado ou balido?"
Maiakóvski 


"É a madrugada e a noite que rolam sobre os telhados
do poema. É Deus que rola e a morte
e a vida violenta. E o meu coração é um castiçal
à beira
do povo que até mim separa os espinhos das formas
e traz sua pureza aguda e legítima.
– Trazem liras nas mãos, trazem nas mãos brutais
pequenos cravos de ouro ou peixes delicados
de música fria.
– Eu enlouqueço com a doçura dos meses vagarosos."
Herberto Helder


"violência da calmaria, 
às vezes, 
é mais terrível do que a travessia das tempestades."


a poesia é aquele movimento
estranho
sem noção
que acontece com as palavras por dentro
que de repente desembaralham
e elas mesmas são as cartas
e se arrumam sozinhas
descabeladamente
ou por vício ou por presteza
numa velocidade tamanha
que desprende de vísceras
e se salva desesperada
agarrada a alguma razão
que a fez nascer
e ser impune aos tamanhos
ouvidos
do
mundo
a poesia é qualquer vida
em
transição

a vida quando complica
adapta
por isso ando
adaptando
tudo


meu duvidar é uma petição de mais certeza

suponho que alguém 
tenha tanta ideia 
do que seja na verdade 
– um espelho?
apenas do que se sabe nas
noções de física
com que se familiarizam
as leis da óptica
eu vou mais ao transcen­dente:
tudo é a ponta
de algum mistério

“Não sei de nada. Não há nada que eu saiba. 
Porém certas coisas se sentem com o coração. 
Deixa falar o teu coração, interroga os rostos, 
não escutes as línguas..."
.
- Umberto Eco, em "O nome da Rosa". 

"Ando com fome de coisas sólidas e com ânsia de viver só o essencial. Leia o "Time must have a stop", de Huxley. Pessoalmente, penso que chega um momento na vida da gente, em que o único dever é lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de "eternidade"."
.

- João Guimarães Rosa, em carta a Antonio Azeredo da Silveira, Rio de Janeiro, 27-X-45. In: "SILVEIRA, Flavio Azeredo da.(org.). 24 cartas de João Guimarães Rosa a Antonio Azeredo da Silveira. 

preste atenção
a vida tá passando bem na sua frente
e você não
se atentou que tudo isso está diferente
em transição
em trânsito
em mutação
nada é estático
de onde vem
tudo o que eu vejo em volta
é feito de gente
o que se atém
porque se achar melhor é tão indiferente
em solidão
incerto
não tem paixão
não tem
afeto
pois ali dentro do seu coração
uma andorinha só não faz verão
e eu não sou ninguém sem você
e eu não sou ninguém sem nós dois
e eu não sou ninguém sem alguém
do lado
sem humanidade o mundo está acabado
- o mundo mudou
e aumentou sua vaidade
o homem foi na lua mas perdeu a humanidade
e eu me pergunto:
o que aconteceu?
desamarramos os nós e destruímos o eu
vivemos a ilusão de que tudo é individual
matamos a compreensão e tá tudo desigual
e você não entende o que está errado
tua visão é cega
e se prendeu no teu quadrado
enquanto do lado
alguém chama o teu nome
já alguém não distante
morrendo de fome
você pergunta:
incomodar pra quê?
o mundo gira meu irmão
amanhã pode ser você
.......
há esperança pra nós
esperança
há esperança pra nós
.......
preste atenção
a vida tá passando bem na sua frente
(e a solidão
pode vir a ser algo
diferente)*
E EU – (Xuxa Levy/ Jesus Luhcas)
*intromissão de Julio Carvalho

DRAMAS
#2
dramas nunca caducam,
pois não esperam. a própria
intenção segura o sangue
da fera, o peso inflado
de nada é um pavor
empanado.
dramas anunciados assoviam
o silêncio e não cabem
no mundo, são mais reais,
por isso não sucumbem.

interinventado do poema de João Pedro Liossi

DRAMAS
#1
os dramas não esperam
o último toque, o derradeiro
 bilhete do ônibus, o fiapo
podre da toalha molhada,
da lembrança. os dramas
não esperam, já estão,
antes, forrando o estômago
com uma grama amarga,
programados para doer.

interinventado do poema de João Pedro Liossi

sendo
somos
sou
temo
às vezes
deixo
de
ser

"Ensaio para o aquoso e o vítreo
No olho do poeta corre o rio
Deságua a estrela
Florescem pétalas e astros
Pululam divindades
No olho do poeta escorre o fio
Cresce a lágrima
Do que era, do que é findo
Em todo o infinito
No olho do poeta
Só no olho do poeta
a vida brilha ressuscitada"

Yesterday don't matter,
'cause it's gone.


não tenho pedaços de mim
tenho percalços em mim

no início 
eu fazia e mexia
pensar não pensava
não possuía prazos 
ou vínculos 
vivia puxando difícil de difícil
peixe vivo em rede escassa
quem mói na vida não fantasia
é moído que dói por dentro
mas agora
feita a folga que me vem
sem pequenos desassossegos
estou de encosto e rede
e me inventei nesse gosto
de especular ideia e fazer poesia
o diabo existe e não existe
deuses existem e não existem
e são o dito
prenúncio de certas melancolias
o senhor vê: existe cachoeira
tanto que existe mar
e então?
cachoeira é barranco de chão
com água caindo por ele retombando
mar arregaça pedra e faz areia
o senhor consome essa água
ou desfaz o barranco
ou desenha na areia
sobra cachoeira alguma?
alguma água de chão?
 pois é
viver é negócio muito perigoso..."
.
- Ousadamente adaptado de João Guimarães Rosa, em 'Grande Sertão: Veredas'. 


“[...] toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podemos nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precedido o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga e se expande, e perpetua, desde que seja justo.”
.
- Raduan Nassar, no livro "Lavoura arcaica". 

engraçado 
como
ninguém mais
entende
a felicidade
genuína

verborragia
critica
" yo participo del coro tal y el director dice que el coro es como un cuento que tiene principio, desarrollo y final... "
estoy muy perdido

via Mariano Raffaelli

ao
atravessar
a lua
olhe
para
ambos
os
lados

"- O cheiro da árvore tá chegando até o final da rua.
Dei risada e disse:
- A árvore se chama Incenso e de quebra a rua ganhou uma orquídea que, em breve deverá florir.
Quem sabe na próxima lua."




- biscoito da sorte incompleto poético :
o investimento mais lucrativo 
é o amor ao próximo dos homens pela língua