sexta-feira, 28 de março de 2014

dos cupidos...

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"se você não vive em algum limite
está apenas ocupando espaço"
Julio Carvalho
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e tenho visto
muita gente infelizmente
confundindo
um cupido 
transtornado
que troca arcos por armas
flechas por balas
e acertar
torto
iguais aqui aos móveis do quarto
a cama sem nível
o armário entortado
essas balas rugindo
como o bêbado do andar de cima
aos gritos
acabaram as flechas
acabaram as chances
o cupido agora é qualquer
assaltante
não tem coração
veia ou medalha
transformando a vida 
o grito
em
nada
o alvo é outro
mesmo que diferente
amor a balas
flechas a transporte
mudou-se até
o meio de morte
todos os arcos perderam a cor
e as flechas
a direção
a nova arma agora
não tem mais
redenção
e viva o açoite do bêbado acima
que é o único protesto
possível
nesta noite
sobre toda essa 
chacina
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quinta-feira, 27 de março de 2014

das anatomias...

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"Corpo, lembra não só quanto foste amado,
não somente os leitos em que deitaste,
mas também aqueles desejos que por ti 
brilhavam nos olhos claramente,
e que tremiam na voz – e que algum
obstáculo fortuito frustrou. 
Agora que tudo já está no passado,
parece, quase, que àqueles desejos também
tu te entregaste – como eles brilhavam,
lembra, nos olhos que te contemplavam;
como tremiam na voz, por ti, lembra, corpo."
Lembra, corpo - Constantinos Caváfis
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poeta respire agora* 
porque talvez seja uma das últimas coisas 
que você possa fazer por si mesmo

poeta respire agora 
porque há um fogo dentro de você 
que precisa de oxigênio para queimar
e se você ficar sem fôlego 
você vai correr contra o tempo

poeta respire agora 
porque uma vez que o pulmão se encher
você tem que segurar o ar para gritar 
inspirar e levar a voz para o céu
você tem que usar o fluxo de sua própria voz
poeta 
tem que respirar agora 
porque depois de cuspir 
você não precisará mais do ar
você estará agitando rimas 
e respirando poesia 
poeta

poeta respire agora 
para nunca mais esquecer a respiração
que você tem
através das passagens de ar 
pela sua garganta
e as alegrias intensas 
pelas cordas vocais
coisas que acontecem
quando você escreve versos
o verso é seu pecado 
é o seu salvador 
é sua música 
é a sua vida
e suas palavras são como maravilhas 
acompanhadas por pianos, flautas e violinos
palavras de você homem 
palavras de você mulher
e esse casamento de palavras 
orbita em torno de seu amor 
entre pessoas, metrôs e carros
mantendo o tempo vivo
nas batidas do seu coração 

poeta respire agora 
porque você tem sempre algo a dizer
porque a paz pode depender do seu próximo poema
porque você respira
e esse ar ajuda seu cérebro 
a dizer ao seu coração 
para manter a sua força
durante o próximo ciclo
e que o sangue possa conter os seus lábios
e formar uma última palavra
a próxima palavra
essa palavra que precisa atingir
até as pessoas mais difíceis
porque todos nós somos feitos dos mesmos elementos
e todos nós respiramos o mesmo ar
assim celebramos nossas várias formas de existir
as várias personalidades
as várias sexualidades 
pela persistência 
pela resistência
de se manter vivo
cada vez que você retoma o fôlego
poeta
o universo ressoa com batidas ondulantes
aterrissagens e anjos e serafins
tempestades são cuspidas
estrelas são supernovas
e você respira com tremores no peito
mesmo quando toda a esperança parece perdida
os sons pela sua garganta vibram
como esperanças e estrelas
como "eu ainda estou aqui"
ou um "oi" ou "hey"
faremos anjos dos nossos bares
cantores dos nossos vagabundos
perspectivas dos nossos exilados
e um infinito de nossas somas 
nós somos os filhos das empatias
e das doenças das favelas
curamos como o sol
como batidas rítmicas
nos retiramos dessa apatia
e por vezes
quando preciso
desistimos de algumas coisas

poeta respire agora 
porque uma vez que você começar o seu poema
você pode morrer por trás de qualquer palavra
e a morte pode ser o fôlego
mais imortal da poesia
assim a respiração é sempre
nossa salvação
eterna

poetas respirem mais uma vez comigo agora:

isso é um poema
que todos nós
escrevemos

*Adaptado de Adam Gottlieb

segunda-feira, 24 de março de 2014

das fidelidades...

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"fiel à sua lei de cada instante
desassombrado, doido, delirante
numa paixão de tudo e de si mesmo"
Vinícius de Moraes
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ainda te amo
mas não mais te bêbado
porque meu drink mais próximo
era muito perto do seu
céu 
sala de estar
sol

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e mais:
os que eu amo
me devoram
e estou farto
de tantos dentes
cerrados
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- e farta de regenerar o que é devorado. (Gizah Santos)
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sábado, 15 de março de 2014

das oposições...

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"oposição é pura poesia"
Natália Barros
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adaptando Mia Couto:

"a poesia aprende-se sendo feliz. 
mas só sabemos que sabemos disso
quando somos demasiadamente infelizes" 
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o destino é uma invenção frágil dos homens
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a paixão é um pássaro que nunca pousa
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qual a possibilidade 
de ser uma ilha
se nem bem perto do porto
alguém chegou?
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se a gente perde
o juízo
final
onde vai parar
o apocalipse
do corpo?
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estou aqui
com a seriedade 
emprestada
aos ossos
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atirei o pau no gato
e eu não estou nem aí
onde acertou
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para que a "poesia de pegação"
quando não se tem o que pegar?
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prazeres:
vida boa
com
nu artístico
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cerre os punhos
antes de dar a cara
à tapa
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não é desconfiança
- é falta de certezas
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dúvida:
no mundo
das pessoas comuns
não tem poesia?
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quando estou distraído
me acontece 
agradecer
no automático
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hoje
aqui
no final
só tem eu

serve?
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viver é um verbo 
que engasga
viver custa um 
frente & verso
de investigação

ou

viver é um verbo carente de investigação
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mudar é a soma de todos os meus outros lugares
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déjàvu é tudo o que deus já viu 
de novo
de novo
e de novo
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das confissões...

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"O destino é uma útil invenção dos homens"
Adolfo Bioy Casares in "O Sonho dos Heróis"
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quero ter o direito de ler enquanto fico sozinho
de soletrar felicidade até o fim do alfabeto
de ter uma paixão que ultrapasse o ultimo fio de chuva
de possuir uma grafia tão impecável 
capaz de reescrever todas as galáxias
quero isso: a possibilidade de ter pressa e realizar
de ter sorte e sonhar invertido uma realidade-sonho
(porque só o sonho cansa)
quero uma visita para ontem
sem nada programado
um de repente aconteceu já foi estou feliz nem percebi
quero um reflexo de mar: um espelho às avessas
quero descarregar despojos de guerra 
dessa confusão de luta desamada 
quero requintes de carinho 
e outras mais novas descobertas ainda para acontecer
quero um alento entre livros e colírios
quero o eco em carne e osso da minha voz
quero muito mais lembrar só das coisas boas
quero desesquecer dos sonhos quando acordar
quero a precisão do inesquecível
quero principalmente entender 
porque nenhum dos meus quereres é assim
um algo acontecível
#prontofalei
já disse tudo
quero apenas o que
confessei
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não quero essa obrigação
de amanhecer
e ter medo de fazer coisas diferentes
queria um dia feito
manhã tarde noite
sem horas
e sem medo
um dia igual
tela 
em branco
.......................................................................

vou sempre além de mim mesmo
escondido no meio do verso
ironias à parte
onde me escondo
me revelo
descoberto
raros os acertos
percebo
que sempre registram
a minha falta
mesmo a fonte escancarada
falta d'água
hoje sou eu
que estou 
me livrando
da verdade
essa pureza recusada
agarrada na pele
áspera
.......................................................................

esse quadro 
na parede
me irrita
essa moldura
me limita
minha métrica
é uma parede
um mural
um céu
eu sou metro nenhum
desmedido
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quinta-feira, 13 de março de 2014

das imersões...

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"O que a poesia deseja? 
Fatalmente ser esse sentir por dentro, 
essa memória enlouquecida que temos das coisas 
e que nos vêm como fagulhas e tapas na cara. 
Talvez ela não deseje tanto, pois apenas, muda, se mostra. 
Quem deseja é nosso corpo cansado e carregado. 
E encontra nela um eco que ressoa o que desejamos encontrar. 
“No verso, sumo do silêncio”, diria um poeta bem esperto 
nesse jogo de revelar e ocultar os sentidos das coisas, Paulo de Toledo."
Suzanna Busato
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queria
aprender com as gaivotas 
a ser 
caçador
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estou careca
de caber
em mim
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vezes em que eu vejo 
tudo diferente
com a poesia
no lugar dos óculos
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meio do nada:
“poesia
tudo o que você calar 
será usado contra você”
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das nudezas...

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“Quero que me vejam aqui em meu modo simples, 
natural e corrente, sem pose nem artifício: pois é a mim que retrato. 
Meus defeitos, minhas imperfeições e minha forma natural de ser 
hão de se ler ao vivo, tanto quanto a decência pública me permitiu. 
Pois se eu estivesse entre essas nações que se diz ainda viverem 
sob a doce liberdade das leis primitivas da natureza, 
asseguro-te que teria com muito gosto me pintado por inteiro e totalmente nu”.
Michel de Montaigne
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amém:
deixai-me 
a mim
e a meus 
silêncios
em paz
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meu comportamento:
mudo
ou
iludo?
silencia
mostra
aposta
em 
não ser.
por enquanto

-  com raffab raffab
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sem pensar 
ser acometido de
virar cometa
incendiar na estratosfera
ser uma fera
cometer doze pecados
faltando poucas horas para se acabar
perder amigos no facebook
perder a vergonha
perder a linha
descosturar
falar a vírgulas errados
desistir dos finais infelizes
não sabotar
mais nada
sem saber

- com noemi jaffe
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querem que eu seja original 
que tudo o que eu diga seja 
original como o pecado
original como os postes
que perfilam seu cinzento perfil concreto
na origem das esquinas
e ao longo das sarjetas
eu não me desculpo
sou algumas vezes infeliz
contradizendo a obrigação 
das falsas felicidades
e não sigo as cobras
as regras
as partituras
eu ando torto
pelas linhas de onde nasci
os trens são de ferro
mas eu não
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segunda-feira, 10 de março de 2014

dos exibicionismos...

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"gosto do mau humor
com filtro"
Julio Carvalho
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transnumental

o meu tezão é nu
desesperado
sem encontro
sem rumo
feito
rua sem saída
só se sai dele cru
diz não a pele
diz não a cor
diz não ao tecido que cobre o corpo
o meu tezão é fácil
não percebe
vem de modo
a encontrar
um outro
vem aos pares
não é só meu
o meu tezão
é duo
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ctrl + alt + nude

identificado 
com o corpo 
sou um poeta
supero pensamentos 
socialmente
condicionados
toda superação é poesia
a poesia é nua
eu poeta
sem vergonha
nudeletras
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das restaurações...


"via de regra
quando tudo acaba
é aí onde eu
começo."
Julio Carvalho
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 .







































"Um comerciante de móveis que acabara de comprar uma poltrona de segunda mão descobriu que num vão do encosto, uma de suas antigas proprietárias havia escondido seu diário íntimo. Por alguma razão – morte, esquecimento, saída precipitada ou penhora – o diário permaneceu ali, e o comerciante, mestre na construção de móveis, o encontrou  por acaso ao apalpar o encosto afim de provar sua solidez. Nesse dia ele ficou até mais tarde na loja abarrotada de camas, cadeiras, mesas e guarda-roupas, lendo nos fundos da loja o diário íntimo, à luz de uma lâmpada, inclinado sobre a escrivaninha. O diário revelava, dia após dia, os problemas sentimentais de sua autora, e o moveleiro, que era um homem inteligente e discreto, logo compreendeu que a mulher havia vivido dissimulando sua verdadeira personalidade, e que por um azar inconcebível ele a conhecia muito melhor do que as pessoas que haviam vivido junto a ela, e que apareciam mencionadas no diário. Ficou pensativo. Durante um bom tempo, a ideia de que alguém pudesse ter em sua casa, ao abrigo do mundo, algo escondido – um diário ou o que fosse - parecia-lhe estranha, quase impossível, até que uns minutos depois, no momento em que se levantava e começava a pôr em ordem seu escritório antes de ir para casa, deu-se conta, não sem espanto, de que ele mesmo tinha, em alguma parte, coisas escondidas das quais o mundo ignorava a existência. Em sua casa, por exemplo, em um vão do teto, numa caixa metálica escondida entre revistas velhas e trastes inúteis, o moveleiro tinha guardado um rolo de anotações que ia aumentando devagar, e cuja existência até sua mulher e seus filhos ignoravam. Ele não saberia dizer ao certo porque guardava esses bilhetes, porém pouco a pouco lhe veio a desagradável certeza de que sua vida inteira se definia não pelas atividades comuns exercidas à luz do dia, e sim por esse monte de bilhetes que se deteriorava neste vão. E que, de todos os atos, o fundamental era, sem dúvida, o de juntar de vez em quando mais um bilhete ao rolo carcomido.
Enquanto ligava o letreiro luminoso que enchia com uma luz violeta o ar negro acima da varanda, o marceneiro foi assaltado por outra lembrança: ao buscar um apontador no quarto de seu filho mais velho, encontrou por acaso uma série de fotos pornográficas que seu filho escondia na gaveta da cômoda. O moveleiro colocou-as rapidamente de volta ao seu lugar, menos por pudor do que pelo temor de que seu filho pensasse que ele tinha o hábito de mexer em suas coisas. Durante a ceia, ele pôs-se a observar sua mulher: pela primeira vez depois de trinta anos lhe vinha à cabeça a idéia de que também ela devia ocultar algo, algo tão pessoal e tão profundamente submerso que, ainda que ela mesma o quisesse, nem mesmo a tortura poderia fazê-la confessar. Sentiu uma espécie de vertigem. Não era o medo banal de ser traído ou enganado o que lhe dava tonturas como um vinho que embriaga, senão a certeza de que, justo quando estivesse já muito velho, iria talvez ver-se obrigado a modificar as noções básicas que constituíam sua vida. Ou o que havia chamado sua vida: porque sua vida, sua verdadeira vida, segundo sua nova intuição, transcorria em alguma parte, no escuro, ao abrigo dos acontecimentos, e parecia mais inatingível do que os confins do universo."

O ABRIGO - Juan José Saer - Tradução: Julio Carvalho
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das fábulas...

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"todas as palavras
são mergulhos
sem pares"
 Caio Garrido


o sonho



a fábula 
ou pensamentos de 
meditação teleguiada:

era uma vez 
em algum lugar
a milhas e milhas
abaixo da 
superfície do oceano
vivia uma jovem
um polvo chamado Nina
Nina passava a maior parte de seu tempo
sozinha fazendo criações estranhas
de rochas e conchas e ela estava muito feliz
mas então, numa segunda-feira, um tubarão apareceu
"qual o seu nome?" disse o tubarão
"Nina" ela respondeu
"você quer ser minha amiga?" pergutou ele
"o que eu tenho que fazer?" disse Nina
"não muito", disse o tubarão
"deixe-me comer um de seus braços"
Nina nunca tinha tido um amigo antes, então
ela se perguntou se era isso 
que ela tinha que fazer para conseguir um
ela olhou para seus oito braços 
e decidiu que não iria 
ser tão ruim assim desistir de um
então ela doou um braço para o seu 
novo maravilhoso amigo
todos os dias dessa semana
Nina e o tubarão brincaram juntos
eles exploraram cavernas
fizeram castelos de areia e nadaram
muito, muito rápido
e todas as noites o tubarão estava com fome
e Nina dava a ele mais um dos seus braços para comer
no domingo, depois de brincarem durante todo o dia
o tubarão disse a Nina que estava com muita fome
"eu não entendo", disse ela
"eu já lhe dei seis dos meus braços, 
e agora você quer mais um?"
o tubarão olhou para ela com seu sorriso amigável e disse: 
"eu não quero um. desta vez que quero todos eles"
"mas por quê?" perguntou Nina
e o tubarão respondeu:
"porque é para isso que os amigos servem."
quando o tubarão terminou sua refeição, 
ele se sentiu muito triste e solitário.
ele sentia falta de ter alguém 
para explorar cavernas
construir castelos
e nadar muito, muito rápido com ele
ele sentiu muita falta de Nina
então ele nadou para longe 
para encontrar um outro amigo

- do filme Short Term 12
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engolindo monstros
porque os sapos 
já passaram
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sexta-feira, 7 de março de 2014

das estruturas...

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"de que é feita a poesia?
- de maiúsculas mentiras,
minúsculas verdades,
dúvidas à vontade."
Cris de Souza
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- Lendo Robert Walser:

esperei 
tanto tempo pela doçura
tons e saudações
traduções apenas
de sons
agora eu não espero
nenhum som ou tom
de fora
aqui meu corpo
uma janela
trancada
e uma sombra
baixando
atrás da porta do quarto
mesmo  assim
continuo querendo
tantos destinos
e nem peço demasiado
para estar em um deles
eu me fragmento
para que cada parte
de mim
possa dar conta
dessa sombra 
que se forma 
diariamente
lá fora
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documentério:

um circulo de palavras
enterradas
e um cansaço
de longa data
que resiste
no meio do livre atravessar 
pelas pessoas
o mesmo cansaço
tão intenso como
a ansiedade
das unhas roídas
e sob a pele
um mesmo homem
puído
corre o risco
de espantar
memórias
antigas
e se refaz
nos dias
que são suas covas abertas
e nisso 
as migalhas do tempo:
uma ampulheta
presa
na garganta
- aguardando 
um grito 
que tem de acontecer
antes 
daquele último 
grão 
de areia
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desisti dele
como Kafka
porque tive medo
de não entender
sua metamorfose
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adolescência:

eu era infeliz
e já sabia
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entre
gentalhas
genocidas
genitálias
e suicidas
o que muda é a praxe
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