quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

das mortalidades...

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"Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave."
Orides Fontela
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dizer um poema em voz alta
é como prece 
que você não espera resposta
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as palavras ditas vão embora
mas as palavras não ditas
ficam com a gente
para sempre
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"nada na vida exigirá de nós mais coragem
do que encarar o fato de que ela termina
- mas do outro lado da tristeza está a sabedoria"
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às vezes as coisas são trágicas o bastante 
que acabam se transformando em comédia
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ninguém sabe o que acontece quando se morre
há tantas opiniões quanto pessoas
e algumas pessoas te dirão que sabem com certeza
e elas não estão erradas
na verdade, de certa forma elas tem sorte
porque o resto de nós
até que vejamos algo que faça sentido
até que ouçamos algo 
que acreditamos
nos sentimos meio vazios
e enquanto pensamos nisso
haverá por certo um tempo
para que a fumaça amarela 
que desliza pelas ruas
e esfrega as costas nas vidraças
haverá tempo
haverá tempo
de compor um rosto
para olhares os rostos que te olharem
tempo de matar
tempo de criar
e tempo para todos os trabalhos 
os dias
as mãos
que se erguem e te deixam cair
e escapar uma pergunta
tempo para você e tempo para mim
e tempo ainda para mais cem indecisões
e mais cem visões e revisões
antes do amanhecer
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o peso da vida

gostava de senti-lo à sua maneira
e ouvi-lo crescer dentro de mim
em carne viva
não queria somente
rasgar-me em feridas
não queria apenas esta vocação paciente
de lavrador
mas também a da terra
e que é onde piso
descalço
assumo o amor como um ofício
onde tenho que melhorar
repetir até a perfeição dos ossos
repetir quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e fazer sentido
deixar nele crescer o sol
até tarde
deixe-o ser a asa da imaginação
a casa da razão
só nunca deixe que sobre nada
para não virar memória

Adaptado de Eduardo White
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do meio da calçada
ao centro do mundo
inteiro
não existe
solidão
quando
as palavras
são pequenos trechos
das coisas
invisíveis

— com Lino Mukurruza.
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Sobre Nelson Rodrigues:

"Senhor Nelson, a maior parte de suas peças 
e contos tem como tema a traição. 
O que pode nos dizer sobre ela?
Minha cara, só o inimigo não trai nunca.
Ora, do jeito que o senhor está falando 
me dá a entender que há tanto traíras 
quanto cornos em todas as famílias! É isso mesmo?
Não existe família sem adúltera. 
E o homem de bem, por sua vez, 
é um cadáver mal informado – não sabe que morreu. 
E não é só isso. Além disso, tudo passa, 
menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, 
na esquina e nas farmácias, 
há sempre alguém falando nas senhoras que traem.
Por que?
Porque o amor bem sucedido não interessa a ninguém."
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das cicatrizes...

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“Criou asas, sem jamais poder voar” 
Agustina Bessa-Luís
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os dias e as noites passam tão rapidamente 
que só sentimos o voo. 
quando os anos marcam nosso corpo, 
com as dobras, as veias, as rugas, 
o saber sobre as coisas enobrece. 
caminhos percorridos às vezes adiados 
nem sempre notados.
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são pra mim é santo
coisa que nem eu nem você somos
se não tem onde falar
faça o que calar
não se mude
não mude
desabafe
que nem eu 
nem  nós dois
somos
sãos
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as cicatrizes e um nada cego

quero uma porta de entrada para interiores fictícios
quando mais tarde eu arrancarei o coração do peito 
para secá-lo com um trapo e usar limpando 
apenas as coisas mais sujas
matéria de palha
a água da calha
barrenta
imunda
a ferragem do coração
emoção morta
alma na palma da mão
escovada
o tecido
violentamente
arrancado
com aquelas cicatrizes
em dois dias
acidentes
de duas pessoas
diferentes
mas não era no corpo
que as cicatrizes
apareciam
elas estavam onde
o coração
permanecia
mais
sujo

(um olhar de fora
menos atento
percebe
tudo)
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a beleza é uma profissão
enquanto artista
ou poeta
aos olhos de quem
cria
sua cria é sua arte
que vem da expressão
do excesso engasgado
do medo da solidão
de não ser compreendido
por forma
coisa ou razão
um artista tem na beleza
o modo impresso
o ímpeto
a força na construção 
do que não soube
do que não pode reproduzir
de outra forma
a não ser que
seja
intensa
forte
e
plena
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você é um chato sempre agora?
que suas dores são agudas?
pontiagudas?
e eu vou com flores
suas dores que se danem
sua obrigação é de não faltar
até que eu e minhas rimas
se cansem
e eu me fartar
dab ataque
rehab rebate
arranque
as algemas
os ruídos
as rimas
com 
pelo, apêlo, apelo, apego
pego pelo meio
e faço rimar
a força
com a forca
e a rima do silêncio
eu faço você
navegar
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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

das dispersões,,,

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"não mente sempre a arte?
e não é
quando mente mais
que ela se revela mais criativa?"
Konstantino Kaváfis
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me beija
sem muita conversa
porque
o amor em
São Paulo
tem pressa
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penso medir
tudo
com alguns
passos
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sou devoto do espanto
o susto é o meu idioma
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permanência
objeto ficante
permanência
objeto invisível
como
ter alma para pedra
metal
água e planta
e todos os lugares
elevados
à
soma infinita
de meus impossíveis
desejos
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basta friccionar nada

a gafe de comer
sem garfo e faca
no pescoço
é lenço amordaçado
de fome
o prato
resolvido
devolvido
sem nada
quando o nada
é que foi
engolido
garganta abaixo
desce
a vergonha:
carne crua
de fantasmas
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vicie, cante, conte, coma,
devore e ache um canto
e crave a letra na mão de ferro feito forja
use até a corja se possível
e o sumo
sacerdote
dote de palavras
e pronto
poesia
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a lâmina
nasce do inominável agir
do ímpeto
do deslocar-se de si
desastrar
destratar
do fio
desdobrar
do corte
desobrar
interrupção estilhaços tensões
subtrações de si
da lâmina ávida de vazios
onde sequer exista espaço
para introduzir a questão
da lâmina disjuntiva feroz aguda
jugular
despida rápida
do avesso do avesso do avesso
da bainha
intrépida fugaz
“Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva”
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eu me proponho a cismar
sobre o que seria a Arte
depois de uma certa conversa:
seriam algumas datas
e linhas e outras incertas
lembranças
mas que a tudo me afeiçoo
quase imperceptivelmente
unindo as impressões
sensações e desejos
e mais alguns imprevistos
de amores incompletos
e a Ela me entrego
em forma de poesia
até completar a vida
unindo os dias

Adaptado de
"O que eu trouxe à arte"
de Konstantino Kaváfis
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a mentira
é a verdade
velha
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CRIAÇÃO

PASMEM
NO
ESFORSUFOCO
DAS
BORBOLETRAS
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meu luto
não é por quem morreu
meu luto é
pelos vivos
que estão mortos
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toco poros
amarras
praias eu toco
teclas de nervos
molas
peles que me tocam
cicatrizes e cinzas
típicos ventres
e gentes e vermes
toco
solos soltos
ressacas
estertores
toco e mais toco
e nada
fileiras de ausências
inconsistentes
corpos
que tu
que o que
que flautas
que faltas
que abismos
que máscaras
que solidões ocas
que se calem as bocas
que sim que não
que sina que me abandona o toque
que reflexos
que complexos
que fundos
que materiais brutos
que bruxos
que chaves
que ingredientes noturnos
portas fechadas que não abrem
que nada toco
em tudo

Adaptado de Tropos
Olivério Girondo
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todo sono sonho
e todo espectro aposto
nem o mar mais comigo
vaza
nem ser um e o outro
e sigo e me sigo
persigo o que vou
o mais longe
o mais longe que posso
saído de dentro de mim
um vértice de galáxias
de sêmen de mistério
e no mais a chuva
enquanto se abrem as portas
e os pulsos
e os poros
raramor
acontece
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quase dormindo
na entressafra
do sonho
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o amor deve ser impossível para nos despojar de certas defesas, 
de valores que não nos falam nada, 
pois o teste impossível exige nossa exposição, 
uma experiencia de solidão no qual nossa mascara é inútil e,
então, conseguimos alçar o voo de uma individualidade 
que ultrapassa o lugar esmagador de nossa pessoa. 
neste lugar peculiar os deuses se manifestam, 
pois eles se revelam apenas nestes momentos impossíveis,
solitários. 
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é difícil é ser feliz
sem ralar os joelhos
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A poesia é um beijo prolonguíssimo 
A poesia são licores estranhos 
A poesia é o balbuciar de gente que acabou de nascer 
A poesia são páginas radioativas 
A poesia é a arte de Kandisnsky 
A poesia são estupros coletivos 
A poesia é uma disciplina samurai 
A poesia são meus cabelos brancos 
A poesia é minha orientação sexual
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é difícil dar nó em pingo d'água, 
olho de água e cachoeira, 
água é mole a vida inteira 
nunca vai se amarrar.
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sábado, 15 de novembro de 2014

das incursões...

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"ali chega o poeta
e depois regressa à luz com seus cantos
e os dispersa

desta poesia
me sobra
aquele nada
de inesgotável segredo"

Giuseppe Ungaretti . A alegria. 
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tudo depende
quando tudo é pêndulo
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e agora
sem amor
eu trabalho com
impossibilidades?
está junto à minha carne
a raiz das impossibilidades
e por isso faço o que eu
quero com o que eu temo
e o fim da tarde me diz 
que tenho um encontro
com o que me resta
da vida
lá fora
a vida
se tornou
uma inalação
de impossibilidades
e a expiação
de carícias
abandonadas
retomo
as
como
se possuísse
uma distância
líquida
entre os olhos
tudo
por sobre
a carne
aberta
na terra
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queda

nem sei
quantos degraus eram
fui cair no último
justo aquele que não vi
torci meu pé
porque
meus olhos distorcem
tudo
o tempo todo
preciso vigiar
as coisas que me furtam
a calçada
a luz dos carros
a noite imensa
e o dia ofusca
não permitem
fuga ou invasão
vem o sono
e de olhos fechados
ninguém sabe
que quando
meus olhos abrem
ainda é sonho
arestas, pensamentos
e os cuidados com
as escadas
infinitamente
com veneno
deslizam
entre a luz
e as coisas
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o retrato falado
de tanto ser
procurado
ficou calado
não adianta
tapar os olhos
com a peneira
a primeira impressão
a laser
ou jato de tinta
por pior que seja
é a que fica
a correção
está a um pincel
dos seus olhos
os passos
são as linhas
dos adeuses
o mundo parou
mas os passos
continuaram
os adeuses
são aquelas coisas
que não voltam
o tempo todo
o tempo todo
o tempo todo
é uma tatuagem
acima do pescoço
não se trata de um rosto
adeus
é a palavra
último
encosto
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calmaria

cansado de ser julgado
ele se mudou
pro país da poesia
onde a palavra
simples e tranquila
o aceita
e vira
poema
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tempos em que já não dá pra duvidar
que alguma coisa vai acontecer...
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a melancolia
debruça-se
sobre mim
como quem 
abre as janelas
de um brechó
talvez eu queira chorar
até onde não existam
lágrimas
um mero subproduto
de sentimento
como esse pó
sobre esses
objetos
antigos
que o tempo
vai esfarelando
sobre todas as coisas
religiosamente
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tudo depende dos homens
da firmeza com que lutam
pelos seus amores
da simplicidade que colocam
em suas ações
do respeito que tem
uns pelos outros 
depende da luxúria
e da vastidão
das suas palavras
alguns tem um gosto
elevado para o não
outros preferem o chão
porque querem raízes
e deixam sementes
outros tem um gosto
elevado para o sim
e projetam as mesmas
sementes
são pessoas dentes-de-leão
flutuantes
semeando
coisas boas
(até as ruins)
que mesmo 
assim
florescem
fosse assim
com minhas
palavras
que
semeassem
no chão
e no vento
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discurso sobre as meias verdades

a água é que faz crescer
novas coisas na terra
é preciso
que a verdade
esteja desenhada
em sua forma
perfeita
para existir um significado
nela
as suas metades
são angustiantes
e sobram
trajetos
a maioria são mal desenhadas
apenas rascunhos 
rabiscos
há um sem número
de metades
verdades atrasadíssimas
que as pessoas conhecen
há muito pouco tempo
é a ausência de verdades
que deixa o fim com ar
oblíquo
e o número delas
meias
é imenso
inumeráveis tolices
tolices que não somam
não subtraem
não dividem
não multiplicam
meias verdades não engendram
cortam o olho
o rosto
o corpo inteiro
cortam
dividem
não enxergam
são míopes
dolorosamente
cacos 
projetos de bestiário
são uma piada 
para alguém
que não necessita de nada
para rir
só esses
se contentam
com metades
meias verdades
são o advérbio do medo
para as verdades
inteiras
basta completar
os espaços
vazios
a verdade inteira
como metáfora
da água:
fora dela
não há vida
.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

dos perpétuos...

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"a maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
nesse ponto
sou abastado.
palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
perdoai. mas eu
preciso ser Outros."
Manoel de Barros
.




















moto perpétuo

o amor ama o que é difícil
quando você se sentir vazio
abra seu coração 
e deixe que o tempo o complete
dentro
o amor aqui
é o fogo ardente
e o amor ardente é fogo
sempre
não se enterra o amor
enterram-se os corpos
mas nunca os seus desejos
nesse caminho do amor
cada um escolhe uma direção
diferente e regras diferentes 
para transgredir
aí então
com o tempo suspenso
não há princípio nem fim
apenas voos infinitos
e eis que com o tempo
toda a curiosidade
e todo desejo desaparecem
e uma corda é amarrada 
no pescoço de cada ser
apaixonado
e assim aprisionados
mesmo que enxerguem um
na verdade são muitos
os apanhados
cada ser que se apaixona
está preso em sua ilusão
e o coração pulsa
a dor constante
do grande espanto
aqui você não ousa olhar
não ousa respirar
espadas afiadas de amor
acontecem 
até onde o amor 
precisa ser fênix
renascer
voltar a voar
plantar folhas secas
em sua volta
abrir as asas para atiçar
uma nova fogueira
e das cinzas 
extrair a fumaça
do desejo
voar e voar
até o coração
ficar quieto e sereno
e voltar a guardar os seus
mistérios

baseado no livro 
A Conferência dos Pássaros - Peter Sís 
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reflexo

uma vida cheia de nada
pessoas como espectros
a única forma de sobreviver
voando com as asas cortadas
e olhos mal arranjados
lançar mão da loucura
porque o excesso de lucidez
é um algo que me mata
o que não vejo de longe
de perto é o que me basta
assim protegido de tudo
entendo o espelho poético
onde escondo meus olhos
dessa realidade patética
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começa
o amor
e suas
ociosidades
patéticas
incontroláveis
então vem o poeta
que depois regressa 
aos seus quatro cantos
com sua luz
e a dispersa
- enfim
acredita
nas coisas
findas- 
e que em quatro letras
bem cabe a vida


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pedro
pede
que a poesia
ande
poesia
não anda
nem a cavalo
nem sobre rodas
poesia pedro
vem de pássaro
e vai de flecha
direto
te acerta
derruba
e não
nos
separa

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